O SHOW DE SÁBADO À NOITE
No frio gostoso da noite da serra estávamos reunidos na sala. De um lado do sofá, Vitória, com ares de enamorada, dedilhava em seu violão sua música preferida e cantava baixinho... Mamãe se encontrava do outro lado, em sua cadeira cativa e eu, no centro das duas. Socorro, deitada numa rede, curtia a novela nos mínimos detalhes. O mundo que acabasse, mas aquele momento era único para ela! Lúcia vinha chegando da rua, pois a seresta na esquina ainda não havia começado. Estava se iniciando mais uma noite de sábado naquela vidinha do interior. Todos passaram a se concentrar na novela, menos eu.
Ia levantar-me para olhar a animação dos jovens na praça, quando uma música suave mexeu com meus sentimentos. Ao voltar-me em direção da voz que cantava, vibrei de emoção! Era mamãe a cantora. Cantava baixinho, mas como cantava! Seria o começo da demência mental que acomete preferencialmente pessoas idosas? Pensei. Não! Não a acho idosa! Não é “esclerose” coisa alguma! E ela continuava a cantar!
Lembrei-me de ter ouvido essa música quando criança, cantada e tocada por ela no violão. Depois nunca mais! Isso emocionou-me e reportou-me à infância. Fiquei admirada por mamãe, em seus 90 anos, ainda a lembrar!
Comecei a bater palmas. E todos que estavam na sala, desviaram os olhos da TV, se voltaram para o show e aplaudiram também! Mamãe se empolgou e levantou a voz. Ligeiro, pedi o violão à sobrinha e ofereci à cantora. Ela quis recusar, dizendo estar com os dedos reumatizados. Mas, diante de nossas insistências de “Toca! Toca! Toca!”, ela aceitou dedilhar e tivemos o melhor show para uma noite de sábado. E todos nós passamos a partilhar do show, cantando junto com ela, relembrando nossa infância saudosa. A música, aprendida em sua juventude, estava ainda guardada no seu cérebro e no seu coração. E ela cantava com veemência, avivando também nossa memória adormecida.
Assim ela cantava (e os filhos também):
♫
Na minha rua do 55
Eu vivia alegre, sem pensar na vida.
O meu vizinho do 57
Me espiou no muro e me chamou “Querida”.
Me deu um galho de uma roseira
E uma trepadeira
Pra eu plantar em meu jardim.
♫
E eu que ainda não pensava em nada
Tomei conta da roseira e carreguei-a de amor!
♫
Mas veio um dia pro 59
Uma jovem linda como o abrir de uma flor.
O meu vizinho do 57
Lhe espiou no muro e lhe jurou amor.
Lhe deu um galho da mesma roseira
E a mesma trepadeira
Pra plantar em seu jardim.
♫
E eu chorando no 55
Descobri que meu vizinho
Não gostava mais de mim.
♫
A trepadeira que eu plantei murchou,
Morreu desiludida na ilusão de quem promete.
E aos poucos eu vi morrer no peito
O amor do meu vizinho do 57.
O que teria levado mamãe a tomar aquela repentina iniciativa? Seria a “esclerose”? Não! Não! Talvez porque ouvira sua neta dedilhar no violão e recordou seu tempo de jovem. É... É aquela velha história: o homem é modificado pelo meio... Melhor pensar assim. E com certeza papai estava lá, presente nos espaços da casa, na reunião da família, naquela sala em que tantas vezes estivera, em suas fotos nas molduras da parede, na tristeza de sua cadeira vazia, mas estava. Senti a chama viva da sua presença a vibrar com a gente! A aplaudir aquela que lutou ao seu lado, a vida inteira, com resignação e amor.
Sou egoísta: não quero que ela vá agora ao seu encontro, mas que fique com a gente só mais um pouquinho, pois perdê-la será outra grande dor, mesclada na imensidão dessa saudade.
Por
Iolanda
Essa música é a cara dela,parece que eu estou vendo ela cantando .Fiquei muito emocionada e sem palavras
ResponderExcluirEm meio as demandas de trabalho, me deparo com um email da mamãe e o link do seu blog. Dei pausa a atividade vigente e fui ler o tão falado poema "O Show de Sábado à noite". Aqui estou eu com os olhos marejados e lembrando do vô Renato, ah aquele velhinho que adoráva massagem nos pés... "Oh Neeeeega, aumenta aqui o volume da coió (televisão) que eu não estou ouvindo nada! Ó o fuxiqueeeeeeeeiro (telefone), menina!"
ResponderExcluirQue Lindo!!
ResponderExcluirTambém lembro da Vó Ildete dedilhando o velho violão. Talvez seja essa a única referência musical de minha infância e ela tocava muito bem. Devíamos presenteá-la com um violão. Ah, e pra quem não conhece a música chama-se vizinho do 57 gravada pela Emilinha Borba. Ai vai o limk para ouvir parte dela: http://discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Musica=MU044638
ou pra quem quiser baixar:
http://www.4shared.com/get/55_UOElJ/05_Vizinho_do_57.html
Grande abraço a todos.