sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


O OLHO D'ÁGUA
  

Hoje sonhei com a fonte do Sítio “Cabocos”. Revi papai, com sua inseparável foice, a cortar as ervas daninhas que teimavam em querer ocupar aquele paraíso e vi-me sentada debaixo do velho coqueiro anão em que tantas vezes brinquei... No sonho, eu molhava minhas mãos na água da fonte e meus pés repousavam na água represada da barragem, enquanto meus irmãos se deliciavam no banho, cada um com suas boias feitas de troncos de bananeiras. E como eu estava feliz! O canto dos pássaros se misturava ao barulhinho da fonte a jorrar: Chuá! Chuá! E a água para a represa a correr: Chuê! Chuê!
O sonho parecia real e acordei com aquele barulhinho de fonte cantando: Chuá! Chuá! Chuê! Chuê! Não queria ter acordado! Desejei continuar vivendo aquilo tudo, voltar no tempo e vivenciar novamente aquela passagem da minha infância! Revolvi-me na cama e notei que meu digníssimo já tinha se levantado e estava no banho: Chuá! Chuá! Chuê! Chuê!  Eis a associação para o sentido do sonho: o barulho da água a correr do chuveiro levou-me a um passado remoto! Fez-me sentir, por momentos, aquela felicidade que o tempo se encarregou de destruir...
Quando criança eu não resistia a um passeio no sítio. Cada passeio era único; cada dia uma novidade!  Achava fascinante aquele líquido a nascer daquele olho d’água e ficava a olhar, absorta, o jorrar da fonte pequenina. Muitas e muitas vezes eu não resistia à tentação de barrar aquele curso d’água que teimava em correr para a represa. Inúmeras vezes juntava, com minhas mãos e meus pés, o barro úmido, à frente do filete d’água, na tentativa de impedi-lo que corresse para a barragem, mas o filete-menino crescia, avolumava-se, rodava inquieto e, de repente, destruía a frágil barreira em que eu pretendera deter-lhe as águas caminheiras e corria gracioso, e já bem volumoso pela disputa, para a nossa piscina, indo ao encontro dos que já se deleitavam no banho. Enquanto o filete-menino, tão criança quanto eu, trabalhava na tentativa de expandir-se, nós, eu e meus irmãos, nos deleitávamos com esse maravilhoso fenômeno.
Naquele lugar, nas horas de ócio que eram muitas, passávamos momentos de enorme felicidade. Que saudades de tudo! A barragem era a nossa piscina natural, era como um mar imenso, aliás, aquele era o nosso mar, pois o outro só conhecíamos nos livros!
Grandes blocos de pedras, misturados ao barro, represavam as águas da fonte perene, daquele olho d’água pequenino, impedindo-as que corressem totalmente sítio afora. Ali naquela barragem, entre a fonte e a parede de pedras, dávamos expansão aos nossos desejos de ventura e de felicidade! Até mesmo o filete-menino esquecia por instantes o seu curso d’água e se deleitava, curioso, com os nossos gritos, braçadas, mergulhos, seguidos do nado sincronizado através das músicas trinadas pelos pássaros, que também se deliciavam com aquela cena fantástica.
Enquanto desfrutávamos do banho, papai, com enorme prazer, corria pelo sítio com uma folha no canto da boca, a colher frutos para a nossa merenda. E a água que bebíamos durante o passeio era a mais gostosa, natural e pura: sugada do coco verde! Bebíamos o quanto nosso organismo aguentasse. Depois, papai ainda fazia uma colher com a própria casca, para saborearmos o coco nascente, aquela calda gostosa! Ah, tempo bom!
Para nós, a fonte tinha voz: Chuá! Chuá! E gritava a correr: Chuê! Chuê! Sempre ouvíamos seus sussurros, dizendo-nos segredos que as pessoas grandes não sabiam escutar. Nós a escutávamos e a entendíamos, porque a amávamos. Chuá! Chuá! Era a fonte a amar! Chuê! Chuê! Era a fonte a viver...
Essa felicidade durou anos e anos para nós... E a vida corria feliz! E a fonte a cantar: Chuá! Chuá! E a água a correr: Chuê! Chuê! E o filete-menino sempre a se renovar: Chuá! Chuá! E ligeiro a correr: Chuê! Chuê!
Porém, como não há bem que sempre dure, com o tempo a fonte perene viu as criancinhas crescerem e procurarem-na pouco. Saudoso de uma mãozinha a atrapalhar-lhe o caminho, o filete-menino crescia. O olho d’água deixou de ouvir gritos de crianças e passou a se sentir triste... Sentiu ciúmes por tê-lo trocado pela cidade grande! Mas estava sempre ali para quando o quisessem...  Seus amigos o abandonaram por outros amores, por outro mar... Por outro mar de águas azuis... É... O curso da vida nos afastou daquele curso de água. Não somos mais os mesmos: nem nós e nem a fonte...
Tivemos que crescer e ir procurar nos firmar na vida. A fonte não suportou a separação e, baixinho, passou a chorar: Chuá! Chuá! Mas ainda a correr: Chuê! Chuê!
Um dia, papai teve a ideia de aproveitar também o curso d’água para outros fins, fora a irrigação das plantas, já que o banho de barragem não mais deleitava crianças.
Então, aproveitou o curso d’água, encanando-o até a casa do sítio, pois ele e os filhos ainda precisavam sentir na pele e nos olhos o doce contato daquelas águas de veludo. E pela porta da casa, aberta para a pequena correnteza através dos canos, entrou aquela água cristalina casa a dentro, enchendo de delicioso enlevo o coração de todos, principalmente do papai, que ficou a contemplar o precioso líquido saindo das torneiras... Com muito prazer aparava, com a mão em concha, a água fresquinha que voltava, com alegria, a cantar: Chuá! Chuá! E descia da torneira, com alegria, a correr: Chuê! Chuê!
E para alegrar também o olho d’água, que já vivia triste sem quase contato humano, papai resolveu colocar uma bica na parede da barragem. E a “Bica do Seu Renato” passou a ser ponto turístico da cidade, onde os jovens se deleitaram em desfrutá-la... E por muito tempo serviu aos filhos, netos, bisnetos, sobrinhos, genros, nora e amigos do Seu Renato... Minhas filhas e sobrinhos têm também muitas histórias pra contar daquele olho d’água.
Mas um dia, Seu Renato envelheceu a ponto de não mais poder ir sozinho do centro da cidade para o sítio; atividade que fazia duas ou três vezes por dia, para cuidar e amar aquelas terras herdadas de seus antepassados... E a saudade do olho d’água, curtido com tanto orgulho por causa dos filhos, apertava-lhe o coração de modo brutal. E não tirava ele o pensamento do sítio... Acostumado à rusticidade da serra, na labuta do campo, não suportava aquela rotina de velho... Por esse tempo os filhos, já todos casados e cada um seguindo o seu destino, curtiam de longe a saudade do velho olho d’água, que a cada instante deixava brotar um novo filete...
Os netos do Seu Renato também já estavam crescidos e outras atividades passavam a interessá-los. E nós, vez por outra levávamos papai ao sítio para matar a saudade. Sempre ao chegar às terras em que tanto labutara, Seu Renato sentia que as forças lhe fugiam para andar serra acima e serra abaixo, naquela vivacidade de outrora...
E o olho d’água entristeceu! Ninguém para lhe cuidar com carinho! Ninguém para lhe arrancar as ervas daninhas que cresciam a sua volta! Ninguém para limpar o leito da barragem! E o filete-menino não tinha mais amigos, ninguém para lhe barrar o curso d’água! Nenhuma criança a nadar naquele mar cristalino! E Seu Renato a envelhecer mais ainda, sentindo, com tristeza, que sua vista estava fraca, que seus pés arrastavam-se-lhe pelo chão em movimentos tardos. Sentindo seu corpo encurvar-se e cada membro seu enfraquecer... No entanto, orgulhava-se de sua lucidez, de sua memória extraordinária. Podiam perguntar-lhe sobre seus antepassados e sua cidade; podiam perguntar-lhe até sobre a vida de Virgulino Lampião, padre Cícero Romão Batista, Antonio Conselheiro; podiam perguntar-lhe sobre as fruteiras plantadas por ele no sítio, ele não titubearia... Porém, sentia que lhe fugia a força da coragem e sentia que sua saúde cada vez mais se debilitava...   E nós, seus filhos, sempre ali, marcando presença em sua vida. Na sua modesta existência de ancião nunca lhe faltou nada! Pelo contrário, seu tesouro estava mais polido e com ele podia contar sempre: seus filhos! Com o tempo somente uma coisa lhe afastava de tudo: a vida! E tudo tem seu tempo e hora...
Um dia, para tristeza de seus filhos e do olho d’água, Seu Renato precisou partir... Vimos, com bastante pesar, a ida do nosso grande idealizador... E bateu-nos de cheio a dura realidade: o curso da vida é semelhante ao curso da água, tem seu fim. Tristemente chegara a vez dele. Mais cedo ou mais tarde chegará a nossa vez e também a vez da fonte, que vive tristemente a cantar: Chuá! Chuá! E lentamente a correr: Chuê! Chuê! Só o tempo dirá até quando... O impiedoso tempo se encarregará de destruir tudo... E novos filetes d’água haverão de surgir, novas crianças haverão de nascer e outras vidas passarão a existir... É a lei do universo.  
Por
Iolanda






2 comentários:

  1. Parabéns por esta linda narrativa do sitio de seu saudoso pai, Iolanda. Isso demonstra o imenso amor que vc tinha pelo Seu Renato, um homem digno de todos os elogios. Você que sabe versejar de uma maneira muito bonita e cristalina, também sabe prosear. Eu tive o prazer de tomar banho naquela barragem quando criança, juntamente com meus primos, filhos do Lauro Campos. O ambiente era indubitavelmente maravilhoso. Consigo ainda me lembrar vagamente daqueles momentos especais, apesar de já terem se passado muitos anos em que estive lá. UM FORTE ABRAÇO e continue nos premiando sempre com seu talento em VERSO e PROSA.

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